Introdução
O propósito do presente artigo é discutir vários aspectos teóricos e práticos da atividade clínica de idosos com risco de desenvolvimento de demência, especialmente a doença de Alzheimer (DA).
O discernimento entre a cognição normal no envelhecimento e a identificação de alterações cognitivas iniciais de uma demência em curso, particularmente a doença de Alzheimer, nem sempre é tarefa fácil. Essa dificuldade perdura há várias décadas e tem gerado definições específicas na tentativa de determinar “quanto” há de normal nas alterações cognitivas do idoso e “quanto” as perdas já representam o início de uma deterioração progressiva. “Esquecimento benigno da senescência”;1 “comprometimento de memória associado à idade”;2 “declínio cognitivo associado à idade”;3 “comprometimento cognitivo, mas não demência”;4 “comprometimento cognitivo leve”;5 e mais recentemente “transtorno neurocognitivo leve/menor”6 – essas constituem as principais tentativas de definição da transição entre o “normal” e o “patológico” no que tange à cognição no idoso. Nos últimos anos, a expressão mais utilizada tem sido “comprometimento cognitivo leve” (CCL), redefinido posteriormente,6 e que adotaremos neste artigo. Essa condição, o CCL, refere-se a um estado cognitivo de pessoas sem demência que relatam alterações de memória de fatos da vida cotidiana, confirmados por pessoa próxima, e objetivamente mensuráveis por testes específicos, sem impacto importante nas atividades instrumentais da vida diária ou com algumas repercussões leves nesse domínio.7,8
...a importância do CCL diz respeito à necessidade de saber se as alterações de memória expressam um perfil cognitivo próprio da senescência (envelhecimento normal) ou se sugerem uma condição prodrômica de demência, inclusive, doença de Alzheimer.
Desse contexto emerge uma questão crucial: quais os riscos uma pessoa com CCL corre em relação à cognição e à funcionalidade?
A resposta a essa pergunta é complexa, como se verá adiante.
O CCL é uma condição importante?
Convém considerar que o cenário que envolve o CCL deve preocupar os médicos que atendem pessoas idosas porque de 5% a 15%, em média, das que apresentam esse quadro evoluem para demência, inclusive DA, condição até o momento inexorável.7 Essa taxa aumenta à medida que a duração da condição se estende ao longo dos anos. Assim, o médico deve estar ciente de que o CCL não representa uma condição que possa ser ignorada. Embora a maioria dos indivíduos com CCL se mantenha ativa em termos cognitivos e funcionais, a possibilidade de progressão para demência, particularmente para doença de Alzheimer, representa um risco considerável.8
Se, por um lado, o CCL não significa, per se, uma condição de demência incipiente, por outro, talvez antecipe a noção de que as alterações de memória podem, sim, representar uma condição prodrômica de uma doença neurodegenerativa em curso, como a de Alzheimer.9
Em essência, a importância do CCL diz respeito à necessidade de saber se as alterações de memória expressam um perfil cognitivo próprio da senescência (envelhecimento normal) ou se sugerem uma condição prodrômica de demência, inclusive, doença de Alzheimer. Obviamente a constatação precoce de um processo neurodegenerativo permitiria intervenções mais apropriadas, também de forma precoce. Antes de qualquer proposta de intervenção, porém, é preciso discutir o significado do declínio cognitivo.
O declínio de memória significa demência?
A maioria dos indivíduos que têm CCL não progride para demência ao longo da vida.10 Nesses indivíduos, o declínio de memória ou de outras funções cognitivas representa uma condição comum na senescência e não causa impacto desfavorável nas atividades instrumentais cotidianas. Trata-se, portanto, de um CCL que não progride para demência. Dessa forma, do ponto de vista clínico, as alterações de memória ou de outras funções cognitivas, como linguagem, orientação, reconhecimento e raciocínio, podem ser consideradas não representativas de um processo demencial em curso quando, ao longo do tempo, o indivíduo mantém o mesmo perfil cognitivo e o mesmo padrão de funcionalidade.
No entanto, todo paciente que apresenta, no momento da avaliação, um quadro de demência bem estabelecido passou antes por estágios iniciais, inclusive prodrômicos como o CCL.9,11 Em outras palavras, na condição de demência, como na DA, as alterações cognitivas causam impacto significativo na funcionalidade, levando progressivamente à perda da autonomia. Alterações neuropsiquiátricas como agitação, apatia, depressão e distúrbios do sono, dentre outras, são fenômenos muito frequentes na demência avançada.12
O quadro 1 mostra a evolução clínica das pessoas com CCL.